quarta-feira, agosto 20, 2003

NÃO ACONSELHÁVEL A PESSOAS SENSÍVEIS

A MORTE...
...é um negócio!
Vou aproveitar escrever sobre isto hoje, enquanto ainda está "fresca" a sensação de ter ido à Junta de Freguesia da Póvoa de Santo Adrião.
Paguei 47 euros e 23 cêntimos de licença para a colocação da sepultura da minha mãe. Cada peça tem um preço. O tipo de sepultura, a lápide, a cruz, a floreira, a jarra... tudo obedece a um preçário! E lá sou eu responsável por mais uma coisa... daqui a 4 anos tenho que decidir o que faço com as ossadas da minha mãe!
Não sei como é que as pessoas aguentam tratar destes assuntos!!!!
Não posso ser uma "pessoa a sério" ou dita normal... simplesmente não posso, porque tudo isto mexe muito comigo! Sinto-me horrorizada com tudo o que envolveu a morte da minha mãe! Tenho imagens na minha cabeça que "voltam" e "voltam" e "voltam"... e se vou contar esta história é mesmo para que possa servir de exemplo... do que nos espera a todos!
A minha mãe morreu no hospital às 13:20 do dia 1 de Junho de 2002. Fui avisada pelo médico que me ligou para o telemóvel às 13:50. Estava a acabar de fazer o almoço para ir para o hospital.
Doença cardíaca prolongada, em que durante quase 18 anos a minha mãe lutou pela vida. Muitos medicamentos, muitos internamentos e muitos médicos a dizerem-me que "não há nada a fazer", como se houvesse alguma coisa a fazer para evitarmos morrer um dia, enfim, ela lutou mas, um dia tinha que acontecer...
Durante anos e anos vivi a angústia de cada internamento. Segundo os médicos podia ser "daquela" vez mas, ela lá se foi safando de morrer... tinha uma força! Não sei se era do medo de morrer (Mãe perdoa-me... eu dzia-te que era e tu dizias que não... mas ambas sabíamos que era... afinal quem é que não se "borra" de medo de morrer?), não sei se era por ela ser teimosa (e era... eu sou-o... e a neta vai pelo mesmo caminho), não sei se era por não ter "chegado a hora", certo é, que a minha mãe só morreu porque desistiu... sei-o! Senti-o!
Acho que morreu em paz, apesar de ser no hospital (ela queria morrer em casa mas, com a doença dela só se fosse ataque cardíaco... e tantas vezes eu lhe disse que para morrer não escolhíamos onde nem quando) e de ter sido coberta com o "lençol branco", como o meu pai (ela não queria aquilo de maneira nenhuma, mas se a tirasse do hospital, podia morrer no caminho... ainda tentei... o médico autorizava... mas disse-me que era uma sorte ela chegar viva a casa... fora o risco de sofrer com o transporte)...
Já tinha combinado com o meu grande amigo P. ("obrigado" é uma palavra demasiado simples para o tamanho da minha gratidão), que podia ficar com a minha filha durante a tarde, para eu poder passar a tarde no hospital... pois, claro... pensava eu! Quando lhe telefonei a chorar ele nem percebeu que a minha mãe já tinha morrido... como estava combinado ele só percebeu que eu ia sair de casa (estava tudo a coincidir com as horas mais ou menos marcadas e chorar por causa da minha mãe já ele estava "habituado"). Encontrámo-nos no Hospital Pulido Valente às 14:40, para ficar com a minha filha, quando percebeu que era mais "complicado"... e teve que esperar com a minha filha... enquanto eu fui ao serviço onde estava internada... falei com as enfermeiras... recebi as "coisas" da minha mãe... assinei papeis... e me disseram que tinha que ir à morgue... que lá me explicavam tudo!...
Desde aquele dia... nunca mais fui a mesma!!!!!!
Pouco passava das 15 horas quando fiquei "frente a frente" com o funcionário da morgue. Uma besta, mas também só uma besta é que trabalha numa morgue! Paletes de mortos... mais uma, menos uma... qual é a diferença? Paletes de parentes na morgue... mais uma, menos uma... qual é a diferença?
Com um ar muito admirado, por eu não saber, disse-me:
- Tem que arranjar uma agência funerária e eles é que tratam de tudo.
Eu - Tudo o quê?
- Tudo... fale com eles que eles explicam-lhe!
Eu - (ainda a tentar perceber o tudo)
- Mas tem que se despachar porque a morgue fecha às 17h, senão só amanhã às 8h.
Eu - (estúpida a olhar para ele com as lágrimas nos olhos) A morgue fecha a que horas?
- Às 17!
Eu - (a pensar na minha mãe ali ao lado com o lençol branco) E como é que acha que eu vou conseguir estar cá antes das 17 se nem conheço nenhuma funerária?

(Faço aqui um parênteses... as funerárias são como os abutres na selva... dão comissões às bestas que trabalham na morgues e poisam nos hospitais... vim eu a saber... mas era sábado... e pelo que vi... só houve um morto naquele dia! De resto, são as funerárias que têm que telefonar para a besta e combinar as horas)

Ele, nem me respondeu... limitou-se a encolher os ombros... ele saía às 17 e mainada! Eu, comecei a tremer por todos os lados e devia estar vermelha de raiva quando lhe disse: "Garanto-lhe que a minha mãe não vai cá "dormir" com o lençol branco por cima da cabeça... é às 17 não é? Antes das 17 venho buscar a minha mãe e saí completamente desnorteada...
O marido da minha prima estava a chegar e ao juntar-me a eles eu só dizia preciso de uma funerária... a morgue fecha às 17... preciso duma funerária... o lençol branco... a morgue fecha às 17... e o tal marido da minha prima conhecia uma! Mas, eu tinha que ir buscar a roupa para vestir a minha mãe...
Ficou de me telefonar quando soubesse alguma coisa, ia para casa telefonar à funerária...
Com o meu amigo P. e a minha filha eu estava cheia de nervos... ele lembrou-se que o pai conhecia alguém e telefonou-lhe e fiquei com o número. Eram da Póvoa e tudo e eu não podia perder tempo... e foi assim que pelo telefone "comprei" a urna da minha mãe. E, foi enquanto esperei por eles que juntei a roupa para a vestir. O que dói passar por tudo isto... e de todos os recados que ela me tinha dado para quando morresse... só tinha os sapatos escolhidos que nem lhe couberam nos pés, porque estão muito inchados... E eles, chegaram...
Hoje, quando penso nisto tudo... só me consigo ver a andar dum lado para o outro, sem tempo para sofrer, sem tempo para pensar... tipo autómato a tratar de um mero acto burocrático assim como se não existissem sentimentos, excepções, concepções ou uma mera compreensão!
Assinei uns papeis, entreguei-lhes a roupa e fomos todos (eu, a roupa, o caixão, os 3 homens e o carro funerário) a caminho da morgue. Eu só tremia e chorava. Eles conversavam não faço a miníma ideia do quê. Chegámos faltavam 10 minutos para ele sair, mas já tinham falado com ele. Até já tinham telefonado da outra funerária (do marido da minha prima) que, quando ele me ligou já eu tinha tudo combinado e eu disse-lhe que já não era preciso... mas os filhos da puta devem ter pensado que o serviço estava garantido e já tinham telefonado a combinar com a besta... concerteza uns euros por fora para o compesar de alguns minutos extraordinários!
Gostava de ter vestido a minha mãe. Nunca falamos nisso, mas eu sei que ela teria gostado e eu não me tinha custado tanto como tudo o que assisti naquela morgue! Deixaram-me na rua... e ligaram o automático... paletes de mortos... ossos do ofício ou a puta que os pariu... mas a minha mãe era forte e aquela besta ficou a "suar em bica" para a vestir... ele saía às 17... tinha que se despachar! Todos umas bestas! Chamaram-me com a minha mãe vestida para reconhecer o corpo!
Entro e vejo o caixão aberto vazio, ao lado uma maca com a minha mãe vestida e a besta a olhar para mim à espera que eu confirmasse... eu, que naqueles poucos minutos fora da morgue só conseguia andar dum lado para o outro, a segurar as lágrimas, cheia de nervos, quando a vi... desatei a chorar! Era a confirmação para aqueles animais! E, sem que eu pudesse fazer nada... pegou a besta dum lado da maca e o "escravo" (eram 3... o escravo, o patrão e o motorista) da funerária do outro... e "despejaram" a minha mãe para dentro da urna! Antes isto não fosse verdade! Mas, fizeram-no à minha frente! Eu só sei que, desatei aos gritos a perguntar-lhes como é que 4 homens não a conseguiram "colocar delicadamente" na urna... mas o patrão (vim eu depois a saber) tirou-me dali para fora... não sei o que disse... não ouvi nada do que ele disse... só não me sai da cabeça aquela "imagem"...
É assim que somos tratados! Não me admira! Não há respeito em vida, como pode haver respeito com os mortos? Mais um, menos um... Venham eles, que eles tratam do assunto! E, nem "sujam" as mãos... os das funerárias!
O "tudo" engloba... este "serviço" descrito, marcar e pagar a capela e o padre (e até para morrer é preciso ter "sorte"...a minha mãe não teve direito a missa de corpo presente, porque aos domingos não se fazem essas missas... só "teve direito" à "recomendação da alma a Deus"), pagar na Junta de Freguesia o "buraco", dar uns trocos ao coveiro porque deve ganhar mal e trabalhar aos domingos é chato e mais qualquer coisa que agora não me lembro...
Fala-se com uma agência funerária e a família não se "chateia" mais com o morto!...
Fartei-me de reclamar, com o tal patrão, com o padre... mas sabem o que é que isso lhes interessou? Nada! É assim... e mainada! Até disse ao padre... até para morrer é preciso ter sorte! Paletes de mortos... todos os dias!!
É triste tudo isto ser verdade!!!!!!!
E chego a este estado ao fim de 14 meses, a pagar uma sepultura, as licenças na Junta de Freguesia e a ser informada que mais ou menos daqui a 4 anos me escrevem uma carta registada com aviso de recepção, para retirar as ossadas...
Que depois tenho que decidir se vai para a vala comum, se compro um caixão (numa funerária) para os ossos e alugo uma "gaveta" a 28 euros por ano (preço actual, sabe-se lá quanto custará daqui a 4 anos) e que pode ser alugada por 1, por 5, por 10 ou por 25 anos... se a quiser levar para uma sepultura perpétua na terra dela... tenho que arranjar uma funerária... pois!
Ainda vou ver onde é que tudo isto está escrito! Juro! Eu disse à senhora que me atendeu e que nem costuma estar ali, segundo ela, que ainda trazia era os ossos da minha mãe para casa e queria ver quem é que me ia impedir! As cinzas pode... os ossos não!
Também perguntei o que era feito com a sepultura agora colocada. Fica para a Junta de Freguesia! Porquê? Para quê? Não me soube responder... e contou-me que em todo o tempo que lá trabalha só receberam um requerimento para ficarem com a tampa da sepultura... alegando que iam fazer um tampo para uma mesa no jardim!
Vou descobrir o que fazem as Juntas de Freguesia com as pedras tumulares! Que toda esta história de morrer é um grande negócio... lá isso é!!!!! Clientes... não faltam!!!!!

E são estas "pequeninas" coisas que me "atormentam", que me "incomodam" e que não consigo esquecer... que bom que é nascer e morrer em Portugal!

Mãe... eu sei que gostaste da sepultura! Desculpa a demora...